Uol:
Dorival Júnior foi anunciado como o novo técnico do Flamengo há menos de duas
semanas -cargo que, mais do que nunca, já vem com um peso quase kármico de
brinde: a responsabilidade de fazer um grande time voltar a jogar como
-pasme!— um grande time.
O elenco do Fla tem talentos que a maioria dos clubes gostaria de ter; que,
individualmente, já fazem os adversários tremerem. Desde a metade da era
Renato Gaúcho, entretanto, esse time que ganhou quase tudo em 2019 e foi
apelidado "Malvadão" parece não ter mais liga. É com a missão de driblar a
viuvez do português Jorge Jesus que Dorival Júnior chega ao Rio de Janeiro.
Hospedado por tempo indeterminado em um hotel na Barra da Tijuca, o técnico
recebeu o UOL com exclusividade para esta entrevista. Nela, falou sobre os
bastidores da decisão de deixar o Ceará, time cuja ótima campanha foi
encabeçada por ele, e como foi a recepção ao ser anunciado, pela terceira vez,
pelo Flamengo.
Sua última passagem pelo rubro-negro aconteceu em 2018, e acabou de forma
brusca devido à troca de gestão. A música "Dorival", da banda Academia da
Berlinda", canta os seguintes versos: "Chorei / Pensando que nunca mais /
Fosse te ver novamente", e foi exatamente desse jeito ele se sentiu quando foi
demitido em sua segunda passagem pelo Fla. "Por não ter sido uma demissão por
mau desempenho, fiquei com isso na cabeça. Com vontade de terminar o trabalho,
como se ainda não fosse o fim, sabe?".
"Nunca saí de clube nenhum e não acho correto esse tipo de atitude. Fiz dessa
vez porque era algo que estava dentro de mim há muito tempo. Algo me dizia
para vir. Pela primeira vez, contrariei tudo o que sempre acreditei para
seguir meu coração. Desde quando fui demitido, em 2018, não tirei da cabeça
que ainda voltaria para o Flamengo. Cá estou."
Intimidade com o elenco
Dorival já trabalhou com cerca de 80% do atual elenco do Flamengo durante sua
trajetória como técnico. É na intimidade com os atletas que ele vê força para,
quem sabe, tirar o time da inércia e aproveitar os talentos que o grupo tem.
"É diferente de chegar em um clube onde a gente não conhece ninguém.
Conheço quase todo mundo ali, e sou próximo deles. Já senti o que estão
sentindo agora. Sei que a vida de atleta não é fácil, e é importante
participar até da vida pessoal desses caras. As coisas não se descolam".
O contrato de Dorival com o Fla é de seis meses, com possibilidade de se
estender caso o trabalho traga resultados. O técnico afirma que não se sente
pressionado com o prazo, apesar de concordar que é pouco tempo para criar um
trabalho do zero.
"Tenho um time com muita qualidade técnica, que está passando por um
momento instável e conturbado. Mas isso não significa que os jogadores
desaprenderam. Confio que posso ajudar a recuperar esse processo, acho que
posso ser útil. Peguei um time em andamento com um trabalho que já foi
iniciado, então vou tentar aproveitá-lo da melhor forma, mas melhorando as
condições para fazer aquilo que eu planejo".
"Conheço o time, sei quais são as lideranças; os pontos positivos e os
negativos. Aceitei a proposta porque acho que posso finalizar bem esse
trabalho, diferentemente do que aconteceu em 2012 e em 2018."
É a terceira passagem de Dorival pelo Flamengo. Em ambas as anteriores, a
demissão do técnico não se deu por a resultados. A primeira, em março de 2013,
aconteceu porque o clube precisou enxugar gastos e não conseguiu manter o
salário do treinador à época. A segunda, em 2018, foi resultante da troca de
gestão.
Ao pisar no Ninho do Urubu ao ser apresentado neste mês de junho, não foram só
os jogadores os rostos conhecidos que Dorival encontrou. Funcionários do
centro de treinamento o receberam carinhosamente, e o lembraram de um episódio
que ele mesmo havia esquecido.
"No meu último jogo em 2018, levamos todos os funcionários que trabalhavam
no CT para o Maracanã. Eles entraram no vestiário, receberam os jogadores,
agradeceram a todos e se retiraram. Aquilo foi muito bonito, e assim que
cheguei no Ninho fui recebido com essa história, da qual eu realmente não me
lembrava. Me senti em casa. Sabia que algo me trazia de volta".
À sombra de Jesus
Jorge Jesus protagonizou as vitórias do Flamengo em 2019 e, desde que o
português deixou o time, o nome dele volta a ser cogitado periodicamente. As
agendas de Fla e Jesus não têm batido -quando o técnico foi demitido pelo
Benfica, o rubro-negro tinha acabado de contratar Paulo Sousa. Quando Sousa
foi demitido, Jesus já estava empregado.
Entre um português e outro, três técnicos comandaram o clube, mas a viuvez de
Jorge Jesus parece assombrar o time -e os novos treinadores que chegam- até
hoje. Dorival diz, entretanto, não se sentir pressionado com a nostalgia da
torcida em relação ao português.
"É natural [o fantasma de Jesus]. O time foi mais que vencedor, ganhou
várias competições e criou uma condição diferenciada dentro do futebol
brasileiro. Com isso, eleva o nível. As cobranças são normais, uma vez que o
time já fez muito. É, sim, uma obrigação um pouco maior. Um clube vive de
conquistas, é preciso ter essa consciência. Ao entrar em um clube vencedor,
é necessário ter consciência de que vou encontrar um caminho de exigências e
perspectivas de anos. E eu concordo com isso. Só que concordo, também, que
as conquistas de 2019 foram fruto de um trabalho a longo prazo, implantado e
corrigido durante as temporadas. Tudo é um processo, é necessário respeitar
esse processo".
No futebol, não se queima etapas
Dorival acredita, ainda, que é possível criar outros caminhos sem desmerecer
aqueles que foram trilhados com sucesso -como é o caso da trajetória de Jorge
Jesus no Flamengo.
"Esse é um elenco em que a gente precisa gerar vida a todo momento. É uma
troca natural e constante, sempre respeitando processos".
Dorival cita Jürgen Klopp quando profetiza que, no futebol, não se queima
etapas. Para ele, o sucesso de trabalho em um elenco demora, e não é com o
imediatismo típico do futebol brasileiro que as coisas vão funcionar.
"Klopp chegou ao Liverpool e, nos quatro primeiros anos, não ganhou nada.
Um time grande inglês, sem conquistas, manteve o treinador", afirma. Em entrevista concedida ao UOL assim que foi demitido do
Athlético-PR, em 2020, criticou a cultura daqui:
"No futebol brasileiro, você trabalha e, já na semana seguinte, tem que
gerar resultados. Ninguém consegue. É uma impaciência muito grande, busca-se
resultado pelo resultado, não se pensa em trabalho, em desenvolvimento; não
se pensa no que o cara está fazendo dentro do clube", diz.
Dorival, vai não
Sob o comando de Dorival, o Ceará apresentava resultados positivos nas
competições das quais participava: chegou a ter 100% de aproveitamento na
Sul-Americana. O técnico deixou o time com 68,51% de aproveitamento -com 11
vitórias em 18 jogos, quatro empates e três derrotas.
A decisão de deixar o clube aconteceu em Belo Horizonte, depois de o time
vencer o América-MG por 2 a 0 -vitória que completou nove jogos de
invencibilidade. O convite, ele conta, veio depois de rumores divulgados pelas
redes sociais de que seu nome estaria sendo cotado para assumir o lugar de
Paulo Sousa.
"Começaram os boatos, e não levei a sério. Mas, depois do jogo com o
América, a proposta foi oficializada. Posicionei a diretoria do Ceará no
mesmo momento e coloquei minha vontade. A verdade é que eu nunca tirei o
Flamengo da cabeça. Só que nunca saí de clube nenhum, nem acho correto esse
tipo de atitude. Mas pensei que, se não voltasse agora, não teria outra
oportunidade de voltar."
O treinador conta que o presidente do Ceará foi compreensivo em relação à sua
decisão, e que é fake o vídeo que circula na internet em que Robinson de
Castro deseja má sorte a Dorival.
"Sempre tivemos uma ligação muito clara e honesta. Tenho um carinho
especial pelo torcedor do Ceará. Foram 70 dias de muita alegria".
"Foi uma decisão difícil de ser tomada, e eu nunca tinha agido assim. Mas
eu aguardava essa oportunidade há anos, não podia recusar."
Vida solitária
Em 2020, Dorival Júnior conversou com o UOL Esporte e contou que seu momento
preferido do dia era o café da tarde com a família. Disse, na ocasião, que não
abria mão da reunião. Faz três meses, no entanto, que o técnico está longe da
esposa e dos filhos, em uma carreira que julga "muito solitária".
"Não vou para casa desde que me mudei para Fortaleza. Lá, aluguei um
apartamento, mas se passei dez dias nele foi muito. A rotina é pesada, mas
ainda tenho vontade de fazer dar certo. É muito prazeroso, apesar de muito
solitário. A vida de técnico não é solitária só pela distância da família,
mas também por nós mesmos: nossas decisões são solitárias -a gente ouve
muita gente, mas a decisão é só nossa. Quando dá certo, dividem-se os
louros. Quando dá errado, o técnico é culpado. Mas é uma carreira muito
bonita e vale a pena apesar de tudo isso."
Curado do câncer -exames de rotina estão em dia e os resultados são
positivos-, Dorival relembra o susto ao ter de fazer uma cirurgia para retirar
um tumor da próstata em 2020.
"É um momento que causa um choque. Muda a concepção, a maneira como encaro
a vida. É interessante. Mudei muito pessoalmente. Passei 13 anos saindo de
um clube e fechando com outro no dia seguinte, sem descansar. A vida me fez
parar um pouco para cuidar de mim. Que bom que deu tempo".
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Imagem: Divulgação