A alma da várzea nos pés de Michael, do Flamengo



Aos 23 anos, Michael carrega, em cada dibre, um passado sem categoria de base, forjado nos campos de várzea dos rincões de Goiás. Tem, em cada saída em velocidade, o espírito da pelada que marcou craques como Robinho, Ronaldinho e Romário, o DNA do futebol brasileiro. Com ousadia, o jovem se tornou a revelação do Brasileiro de 2019, não apenas marcando gols mas também fazendo jogadas de efeito. Só que vestir a camisa do Flamengo e manter essa personalidade não é fácil. Sobretudo quando ele tem pela frente zagueiros rápidos e fortes pelo caminho.


A análise tática sobre o clássico entre Flamengo e Botafogo, no sábado, focou em como o time de Paulo Autuori segurou o ataque treinado por Jorge Jesus por 60 minutos com sua linha de três zagueiros. Na arquibancada do Maracanã, entretanto, a situação que mais mexeu com torcedores dos dois clubes foi o embate entre o pequenino Michael e o zagueiro Marcelo Benevenuto. O placar de 3 a 0 para o time rubro-negro se construiu depois de um dibre seco do atacante de 23 anos aos 13 minutos do segundo tempo, que levou ao primeiro gol, após uma série de tentativas frustradas na etapa inicial. Michael ainda marcou com movimentação atípica por dentro, vindo da direita na diagonal e confundindo a defesa.

Com 1,66 m e 60 quilos, o jogador do Flamengo foi muito bem marcado quando tentou ganhar na velocidade do defensor, bem maior que ele: 1,79 m e 78 quilos. Ficou claro que não se tratava de uma questão de força, nem rapidez. Ali, era jeito. O primeiro questionamento que se fez à época do investimento de R$ 34,5 milhões em sua contratação foi: será possível Michael funcionar em uma equipe que controla o jogo e enfrenta defesas fechadas, diferentemente do campo aberto que encontrava pela frente no Goiás, montado para acioná-lo nos contra-ataques? A atuação contra o Botafogo deu sinais de que esse não será um problema para o Robozinho, apelido carinhoso pelo qual Michael é chamado em função de sua altura e velocidade.

Benevenuto não tem apelido — a seriedade da posição, aliás, dispensa —, mas comprovou sua qualidade ao atuar com precisão nos desarmes sobre o atacante no primeiro tempo, e obrigar Michael a buscar mais de seu repertório. No começo do duelo, o jogador do Flamengo tentava simplesmente aproveitar o fundo do lado esquerdo para tentar ganhar na velocidade. Mas com a linha de três zagueiros, o Botafogo dava a Marcelo tranquilidade para o bote, já que tinha a sobra. E assim o alvinegro levou vantagem por pelo menos cinco oportunidades.


Em certo momento, Michael chegou a titubear. Partir ou não para cima? Ao receber na beira do campo e se deparar com o seu algoz, cortou algumas vezes para dentro, para tentar tabelar com Bruno Henrique e Gabigol. Até Everton Ribeiro foi chamado por Jorge Jesus para se aproximar pelo setor para permitir movimentação coletiva que furasse o bloqueio. Curioso que, em toda tomada de decisão equivocada nas jogadas, o técnico do Flamengo não cobrava Michael. Sabia que o adversário tinha méritos. Mas no intervalo não é difícil imaginar que tenha se repetido uma cena marcante em um dos primeiros treinamentos do reforço rubro-negro. Ao receber a bola pela ponta e se deparar com o marcador, Michael tocou para trás. Jesus interrompeu o treino e ordenou que ele partisse para o duelo.

Na jogada do primeiro gol sobre o Botafogo, Michael recebe passe de Diego, que se aproxima para fazer maior volume ao ataque. A bola é colocada — não perto da linha lateral, como a maioria durante a partida —, mas perto da grande área. Ao chegar nela decidido ao dibre, Michael dá cinco toques, os dois primeiros ainda do lado de fora da área, mais dois dentro para ajeitar o corpo, até o quinto toque fatal, em que muda de direção, já preparando a bola para o cruzamento com o pé esquerdo. Assim como em todas as jogadas pelas pontas, Benevenuto acompanha o atacante na velocidade, chega inteiro na frente de Michael, mas se ilude com a ameaça de chute que se transformou em uma preparação para o cruzamento. Porque no futebol o bom dibre é aquela solução que simplifica as coisas. O Botafogo tinha seis jogadores na área, e mesmo assim Ribeiro recebeu o passe, que teve desvio do goleiro Gatito Fernández. E fez o gol.

A pergunta sobre o encaixe de Michael no ataque do Flamengo de Jorge Jesus ganhou outra resposta interessante no fim da partida. Gabigol fez a já tradicional movimentação para receber a bola roubada perto do meio-campo, mas dessa vez estava centralizado. Ao carregar, tinha Bruno Henrique ao seu lado, e Michael aberto pelo lado direito. O velocista então corre em movimento de curva, para se alinhar aos zagueiros do Botafogo e fugir do impedimento. Em seguida, diminui a velocidade para preparar a finalização, e arremata com o lado externo do pé direito, quase que um biquinho. A jogada no melhor estilo Romário termina com o movimento do corpo dando força e direção à finalização. São dois dibres de corpo. O que o coloca em condições de finalização e o que se passa de frente com o goleiro para vencê-lo.

Ainda é cedo para dizer que Michael é a grande contratação do Flamengo para a temporada 2020. Nem que seu estilo irreverente e agudo o fará ser solução recorrente para Jorge Jesus, mais até do que os reforços que chegaram da Europa, como Pedro Rocha e Pedro. Fato é que o atacante é o que se tem de saboroso neste começo de ano em que Gabigol se consolida como ídolo rubro-negro e Bruno Henrique e Everton Ribeiro formam um trio poderoso na busca por mais títulos.


Fonte: https://oglobo.globo.com/esportes/ensaiada-alma-da-varzea-nos-pes-de-michael-do-flamengo-24293498

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