Por Leonardo Miranda: No Bem, Amigos! de ontem, o Flamengo foi motivo de uma interessante discussão. O comentarista Marco Antônio Rodrigues disse "nunca ter visto um time assim" no Brasil, e em resposta, Mano Menezes disse que é preciso ter um pouco mais de cuidado na análise: "O jeito que o Flamengo está jogando agrada a todo mundo. Nós não somos contra isso. Mas não podemos achar que o futebol brasileiro começou agora".
O momento que o Flamengo vive merece respeito. É um time que pede para ser admirado porque joga o fino da bola mesmo. O problema é o deslumbramento. Se encantar demais, subir no salto e ver as coisas com um espelho longe da realidade. É difícil não se deixar deslumbrar, porque futebol lida com emoção, e já muito saudosismo e subjetividade envolvidas. E memória afetiva. O Flamengo lembra os times marcantes da infância de cada um, e por isso, passa a ideia de que é uma coisa muito nova.
Em momentos de histeria coletiva é preciso ser objetivo. Racional. De onde vem as ideias que Jorge Jesus tem como técnico? Como ele aprendeu a transformar isso em treinos?
Se você tivesse que resumir esse Flamengo em termos termos táticos, meramente conceituais, quais seriam? Podemos apontar três ideias principais que os jogadores conseguiram entender e levam a campo nos jogos. Uma delas é o conceito de bola coberta e bola descoberta, usado na defesa. O outro é uma mobilidade muito grande no ataque, seja com a bola e sem a bola. E o outro foi apontado pelo Bodão e Mano Menezes, que é a intensidade de jogo: o time não para e sempre realiza suas ações numa velocidade muito grande.
Nada se cria, tudo se transforma
Nenhuma dessas ideias é nova. Ou resgatam o "antigo futebol brasileiro". Na verdade são ideias puramente europeias, que existem há pelo menos trinta anos. Pegue o conceito de bola coberta e bola descoberta. O pai desse conceito é o italiano Arrigo Sacchi. Ele treinava o Milan e fazia experimentos para brincar com a linha de impedimento. Queria que os atacantes fossem os primeiros defensores e todo mundo avançasse para criar uma teia ao redor da bola. Cobrir a bola e deixar o adversário impedido.
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Arrigo Sacchi, bi-campeão europeu com o Milan — Foto: Leonardo Miranda
A principal inspiração de Sacchi vem da Holanda de 1974. Até então, a Holanda era um país sem tradição no futebol. Tinha um grande time, o Ajax, e o Feyenoord, campeão mundial de 1970. Na Copa ela chegou como surpresa pela forma como caçava a bola e não deixava o adversário jogar. O uruguaio Pedro Rocha, camisa 10 do São Paulo na época, saiu exausto da derrota de 2 a 0 para a Laranja Mecânica e disse que nunca tinha visto um time que não deixava ele nem virar o corpo de tão forte. Não é o Jorge Jesus que inventou a marcação pressão no futebol brasileiro, ela existia antes mesmo do Flamengo ser campeão mundial.
O futebol total que hoje tão é admirado não é unicamente holandês. Ele é uma mistura de influências que começam na Escócia e terminam em Londres. A ideia de ter a bola como centro do jogo veio dos ingleses. Mais precisamente de Vic Buckingham. Vic treinou o Tottenham, Ajax e Barcelona. No time holandês, ele viu uma jovem promessa da base e o levou ao time principal. Era 1965 e ele saiu ao fim do ano, mas a filosofia de Vic influenciou bastante aquele jovem que se chamava Johan Cruyff. Consegue ver os dois aí?
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Vic Buckinham e Johan Cruyff em 1964 — Foto: Leonardo Miranda
Só que o Flamengo é muito mais que posse de bola. Na verdade é um time bem direto, que fez 36% dos gols em contra-ataque e outros 25% em roubadas de bola na frente. É um time rápido, de futebol direto, vertical e agressivo. É muito mais Bayern de 2013 que Barcelona de 2011. Marca bem, rouba e sai ainda melhor. Marcar bem para criar espaços lá atrás é uma ideia difusa e que muito time fez. Mas tem um que tornou isso oficial: a Inglaterra em 1966.
Alf Ramsey observava a Argentina jogar e via que eles levavam vantagem no meio-campo. Seus jogadores eram rápidos e iam de uma área para a outra, roubavam a bola e corriam contra os defensores perdidos. Foi daí que ele teve a ideia de acabar com o 4-3-3 e colocar um jogador a mais no meio, que faria várias funções: era atacante com a bola, defensor sem ela e meia quando o time precisava. Um craque chamado Bobby Charlton.
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Bobby Charlton e Alf Ramsey — Foto: Leonardo Miranda
A Inglaterra fez uma Copa de 1966 muito boa. Triturava os adversários no físico e em contra-ataques mortais - parece o Fla contra o Grêmio? Parece tão simples, mas antes da Inglaterra, a maioria dos times jogava no WM e 4-2-4 e eram estáticos demais. A bola ia jogador, que dava o passe e ficava parado. Era um time que jogava com a bola e sem a bola, o que os portugueses dizem que foi a principal contribuição de Jorge Jesus ao Brasil - leia na Folha.
Esse jogar sem a bola, sem parar e sem pensar no coletivo teve início lá na Hungria, em 1954. Um falso nove na frente, mobilidade da linha de frente, meias que chegavam e recuavam. O primeiro time que se aquecia antes do jogo para entrar mais ligado e preparado. Hoje chamaríamos esse time de intenso, pela forma como era rápido e veloz na execução de seu jogo. Dizem que o Brasil, antes do jogo na Copa, ridicularizou o aquecimento. Perdeu por 4 a 2.
Hungria de 1954 — Foto: Leonardo Miranda
Agora faça a pergunta: o que o Flamengo tem de brasileiro? O que Jorge Jesus está resgatando? A resposta é simples: NADA.
Bola coberta e descoberta? Existe há trinta anos. Intensidade? Coisa que muito time coloca em campo. Jogar sem a bola? Existe desde a década de 1960. O Flamengo pode ter conceitos totalmente europeus e PARECER um time brasileiro do passado, de futebol bonito, e pode parecer que é uma revolução no nosso país porque poucos times jogam assim. Verdade ou mentira? Não sabemos porque é uma percepção. Que é subjetiva, pessoal e acontece apenas na cabeça de cada um.
Discutir percepções é o foco errado do debate sobre futebol
Discutimos demais as sensações do jogo. Ou é bonito, ou é feio. Ou é bom, ou é ruim. Não há muitas discussões sobre conceitos, ideias, metodologias. Todo mundo sabe que o futebol do Flamengo é bonito, mas ninguém sabe de onde vem. Achamos que é a varinha mágica do técnico, mas não sabemos como funciona o trabalho dele. Ver o jogo sempre pelo lado da percepção, do gosto pessoal e da memória afetiva faz com nosso país tenha muita opinião, mas pouco conhecimento.
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jorge jesus, flamengo x csa — Foto: André Durão / GloboEsporte.com
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Tite de cara feia na convocação da seleção brasileira — Foto: Pedro Martins / MowaPress
É por isso que ele não vai mudar, incomodar ou revolucionar o futebol brasileiro. Porque nossas estruturas permanecem as mesmas. O Mister não muda a forma dos clubes se organizarem, com conselhos deliberativos que se elegem por conchavo político e gerem os clubes de forma amadora. Ele não muda o calendário inchado. Não paga as dívidas que impedem os clubes de contratarem um Filipe Luís ou um Rafinha. O tempo gasto debatendo percepções subjetivas dos técnicos - fulano é bom, fulano é ruim - é inversamente proporcional ao caminhão de problemas estruturais que temos.
Jesus segue sendo um técnico excelente, com um trabalho excelente como já tinha feito no Sporting e no Benfica. O Flamengo é um time admirável. Mas não inventou a roda. Talvez seja nossa percepção sobre o jogo que precisa melhorar.
Fonte: https://globoesporte.globo.com/blogs/painel-tatico/post/2019/11/05/o-flamengo-de-jorge-jesus-nao-e-um-resgate-do-antigo-futebol-brasileiro.ghtml
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