Por Rodrigo Capelo | GE: Um dos jogadores mais importantes do elenco que conquistou títulos nacionais e
internacionais nos últimos anos, o volante Gerson está de saída do Flamengo.
Ele jogará no Olympique de Marselha. Pela transferência, o clube carioca
embolsará para lá dos R$ 150 milhões.
Esse é o tipo de notícia que, para o torcedor menos acostumado a acompanhar as
finanças rubro-negras, pode parecer fora de lugar. Vocês da imprensa não dizem
faz tempo que o Flamengo está rico?
Na verdade, a história é um pouco mais complicada. Por mais que tenha
alcançado o maior faturamento do futebol brasileiro – com sobras! –, os custos
do time multicampeão não são baixos. Ainda que tenha vendido atletas, os
direitos de outros tantos contratados precisam ser pagos.
O balanço referente a 2020, então, será visitado para que o torcedor obtenha
algumas respostas. A recuperação conquistada na última década está sendo de
alguma forma comprometida? A agressividade da diretoria de Rodolfo Landim no
futebol tem ocasionado riscos demais?
Panorama
A história rubro-negra recente pode ser contada a partir do gráfico a seguir,
que compara faturamento (tudo o que foi arrecadado no decorrer da temporada)
com endividamento (o que havia a pagar no último dia de cada exercício). A
proporção entre ambos é relevante.
Depois de um longo período de recuperação financeira, em que foi reduzindo
paulatinamente a quantidade de dívidas, o Flamengo passou a investir em
futebol pesadamente a partir de 2019. Atletas adquiridos são parcelados,
então, ao pé da letra, representam dívidas.
Não havia problemas aparentes, pois a arrecadação estava em franco
crescimento. É o brasileiro que mais se aproximou do R$ 1 bilhão. E aí
aconteceu a pandemia. Um momento extraordinário e imprevisível da humanidade
que, lógico, geraria consequências negativas.
Receitas
A evolução do faturamento, quando analisada no detalhe, precisa ser feita com
cuidado para não confundir o torcedor. Nos direitos de transmissão, a pandemia
gerou uma anomalia na maneira como o dinheiro é registrado por clubes de
futebol em seus balanços.
Uma vez que o Campeonato Brasileiro foi encerrado em 2021, parte relevante dos
pagamentos só aparecerá nas demonstrações financeiras do ano seguinte. Do
valor referente às televisões aberta e fechada, 30% estão condicionados à
posição na tabela. E o Flamengo foi campeão.
Significa que há R$ 35 milhões adiados para a contabilidade do ano seguinte.
Isto apenas na parcela ligada à performance. Há quantias variáveis
relacionadas ao número de partidas transmitidas e aos pagamentos do
pay-per-view. Este dinheiro não foi perdido, só adiado.
Por outro lado, o futebol causou uma redução nesses valores de transmissão ao
não alcançar as fases finais ou os títulos de Copa do Brasil e Libertadores.
As premiações dessas competições, totalmente meritocráticas, são
contabilizadas como mídia nos balanços.
Nas bilheterias, a situação é diferente. Com o recomeço dos campeonatos a
portões fechados, o clube não pôde vender ingressos. Em 2019, ela havia
colocado R$ 109 milhões nos cofres. Em 2020, só R$ 27 milhões. Este dinheiro,
sim, foi perdido por causa da pandemia.
No outro item que compõe o que chamamos de "torcida e estádio", a associação,
a variação foi muito pequena. O programa de sócios-torcedores cresceu um
pouquinho, enquanto os sócios que usam as dependências sociais da Gávea
reduziram a participação.
Na área comercial, a direção conseguiu elevar de maneira relevante o
faturamento. A diferença entre 2019 e 2020 foi de R$ 20 milhões a mais – uma
soma que inclui patrocínios do futebol, licenciamentos em geral (inclusive
Adidas) e patrocínios incentivados dos esportes olímpicos.
As transferências de atletas proporcionaram mais uma vez valores superlativos.
Foram R$ 148 milhões arrecadados (descontadas participações de terceiros sobre
o valor bruto, critério adotado pelo blog em toda as análises financeiras).
Reinier foi a maior venda do ano.
Valores brutos, antes dos descontos, foram esses:
- R$ 139 milhões – Reinier
- R$ 24 milhões – Pablo Mari
- R$ 16 milhões – Vinícius Souza
- R$ 10 milhões – Caio Roque
- R$ 5 milhões – Matheus Sávio
Orçado versus realizado
O "aproveitamento" da administração também pode ser medido objetivamente com o
paralelo entre orçamento (previsões da diretoria para a temporada) e balanço
(com os resultados alcançados).
Aqui precisamos ter, de novo, aquele cuidado com as receitas de transmissão
adiadas. No total, o Flamengo pretendia arrecadar R$ 726 milhões em 2020. No
resultado, conseguiu R$ 595 milhões. Mas uma parte nesta diferença diz
respeito à grana postergada.
Nas outras linhas de negócio, houve superações e frustrações. A área comercial
e de marketing foi além do que ela mesma previa para o ano, por exemplo. Nas
transferências de jogadores, o resultado também ficou muito acima do que era
tido como necessário para a temporada.
Nas bilheterias, o clube levou o maior tropeço. Não havia como prever que a
pandemia do coronavírus aconteceria, então neste caso a postura da direção é
compreensível. O clube tinha acabado de ganhar tudo com Jorge Jesus. Era de se
esperar que estourasse de vender ingresso.
Ao analisar a tabela abaixo, só tenha um cuidado: no orçamento rubro-negro,
receitas com "outros" (como loterias) são incluídas entre associações. No
balanço, o detalhamento é maior. Isso quer dizer que a frustração nos sócios
foi menor do que a comparação sugere.
Nota técnica: no orçamento, o clube classifica receitas com "outros" entre
"associações", o que causa pequena discrepância nos dois itens
A folha salarial é a combinação entre salários, encargos trabalhistas,
direitos de imagem e de arena. Tanto no orçamento quanto no balanço, o
Flamengo não detalhou o montante que compete apenas ao departamento de futebol
– pequena falha de transparência. Então os valores descritos acima incluem
clube social e esportes olímpicos.
A comparação entre orçado e realizado mostra que neste custo, o mais
importante de todos, o montante gasto ficou acima do que havia sido previsto
para a temporada. E olha que a projeção inicial não era nada baixa: era alta
suficiente para ser a maior do futebol brasileiro.
Nos resultados resultados, aparecem juros e encargos sobre empréstimos
bancários, correções monetárias e variações cambiais. Diferente de
adversários, nesta linha o Flamengo tem a maior parte neste último item, a
variação cambial, que não interfere no caixa.
Trata-se da diferença contábil entre o momento da compra de um jogador e o
momento do pagamento. Entre um e outro, o real desvaloriza e gera um efeito
que precisa ser contabilizado, como diz o manual contábil, mas não representa
dinheiro vivo.
No resultado líquido, a linha do balanço que costuma atrair maior atenção das
pessoas, o valor assusta. Mas não diz muita coisa. Se lembrarmos que parte
relevante das receitas foi adiada para o exercício seguinte, significa que o
deficit não seria tão alto quanto o registrado.
Dívidas
Esta é a parte do balanço que bota algum receio em quem lê. Diante das muitas
contratações que o Flamengo fez para reforçar o futebol, há obrigações
parceladas que põem pressão sobre o caixa. É por isso, principalmente, que
jogadores importantes precisam ser vendidos.
Quando o endividamento rubro-negro é quebrado de acordo com o prazo para
pagamento, as dívidas de curto prazo (que precisam ser pagas em menos de um
ano) apresentam um aumento rápido nos últimos anos. A associação tem R$ 295
milhões a pagar em 2021.
Um pouco diferente de outros clubes em alguns indicadores, mais uma vez, esses
números precisam ser contextualizados. É possível entender a gravidade deles
quando colocados numa ordem lógica.
Em 31 de dezembro de 2020, o Flamengo tinha:
- R$ 346 milhões em dívidas de curto prazo
- R$ 51 milhões disponíveis em caixa e equivalentes
A diferença entre esses dois números dá R$ 295 milhões. Este é o número que
aparece no gráfico acima, segundo critério adotado pelo blog para calcular o
endividamento em todos os clubes.
Em 31 de dezembro de 2020, havia, também no curto prazo:
- R$ 100 milhões a receber por atletas vendidos
- R$ 26 milhões a receber por patrocínios e licenciamentos
É possível que o Flamengo leve calotes dos clubes e patrocinadores, é possível
que os pagamentos atrasem e compliquem o cotidiano. Vamos considerar neste
exercício que não haverá problemas. Feita a subtração, chegamos a R$ 169
milhões "descobertos", a pagar no decorrer de 2021.
Existem pelo menos duas saídas para honrar esses compromissos. A primeira é
aumentar a arrecadação e segurar a despesa num patamar baixo suficiente para
que haja uma "sobra" nessa conta operacional. Quando a diretoria abre mão de
jogadores como Gerson, por mais importantes que sejam para o time, é
justamente para achar essa grana.
Caso não seja encontrado dinheiro suficiente para fazer frente a todas as
dívidas, a segunda saída é pegar um empréstimo bancário. Assim a diretoria
"rola" o problema. O dinheiro captado hoje precisará ser pago algum tempo
depois, trata-se de uma dívida, mas dá tempo para que mais dinheiro entre sem
que nenhum credor fique sem receber.
Esse raciocínio tem funcionado no Flamengo – e não em outros clubes – porque o
clube se organizou para tal. Ele só tem "contas a receber" relevantes porque
vendeu bem seus jogadores. E só tem crédito na praça para pegar empréstimos
porque está com as contas organizadas.
Entre dívidas com instituições financeiras, o Flamengo possui R$ 60 milhões a
pagar para o Banco de Brasília (BRB), também patrocinador do clube. O próprio
contrato de patrocínio do BRB foi dado como garantia para o pagamento, além de
partes dos contratos da Adidas e da Globo.
No gráfico abaixo, dívidas "fiscais" são parcelamentos de impostos que
deixaram de ser pagos no passado. O Profut é o maior deles. Em "outros", estão
direitos federativos e econômicos de jogadores adquiridos, em parcelas,
comissões para intermediários e fornecedores.
Na parte "trabalhista", há salários e encargos correntes (que não correspondem
a atrasos ou calotes) e ações que o clube responde na justiça. Causas ligadas
ao incêndio ocorrido no Ninho do Urubu, os acordos firmados com as famílias
das vítimas, aparecem nesta linha.
Dívidas não provisionadas
O Flamengo tem ações judiciais (cíveis e trabalhistas) movidas contra ele em
andamento. Em cada balanço, a diretoria determina a probabilidade de perda
nesses processos segundo as nomenclaturas:
- "Provável"
- "Possível"
- "Remoto"
Apenas os valores de perdas "prováveis" são inseridos no passivo e
consequentemente no endividamento demonstrado nos gráficos anteriores. Além
deles, o Flamengo possui R$ 323 milhões em processos em que seu departamento
jurídico considera a derrota apenas "possível" ou "remota". Isso significa que
o endividamento pode ficar maior.
Dentro deste valor, existe um processo que o clube responde por não ter
registrado operações de câmbio entre 1990 e 1998, relacionadas a compras de
jogadores. O departamento jurídico afirma que R$ 44 milhões têm perda
"possível" e R$ 119 milhões têm chance "remota".
Também incluídos no valor total, existem R$ 76 milhões em perdas "possíveis"
para uma ação que foi movida para impedir que o Flamengo fosse patrocinado
pela Caixa Econômica Federal. Advogados rubro-negros tiveram vitórias em
primeira instância e aguardam recursos.
Futuro
Com a maior torcida do Brasil, o Flamengo tem tudo para continuar com o maior
faturamento do futebol brasileiro por um bom tempo. Com mais dinheiro
entrando, pode gastar e investir mais. Mesmo num ano com suas crises na esfera
esportiva, novos títulos foram conquistados.
No horizonte, exceto Palmeiras (com sustentabilidade) e Atlético-MG (com
favores de mecenas), não parece haver outro clube com grana suficiente para
ameaçar a hegemonia esportiva que o Flamengo ambiciona. Só o mesmo o Flamengo
pode colocar tudo a perder.
O acompanhamento das finanças rubro-negras, com base nas documentações
publicadas pelo clube, indica que as contas continuam equilibradas. Mesmo com
tantos investimentos feitos no futebol em tão pouco tempo, riscos parecem
estar dentro do razoável.
Não quer dizer que a situação esteja fácil. O valor "descoberto" nas dívidas
de curto prazo – R$ 169 milhões, lembra? – não pode ser subestimado. Na
prática, todos precisam ter em mente que esses compromissos precisam ser
honrados. Foi ótimo comprar os direitos de Gabigol, Pedro e tantos outros.
Agora o Flamengo precisa pagar por eles.
A consciência de que nem todos os jogadores podem ser contratados, de que às
vezes peças importantes precisarão ser vendidas, serve a todas as partes
envolvidas na opinião pública: torcedores e jornalistas. Até porque, sabemos,
neste jogo os dirigentes são movidos muitas vezes não pela racionalidade, mas
por vaidade e interesses pessoais.
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Fonte: https://ge.globo.com/blogs/blog-do-rodrigo-capelo/post/2021/06/18/as-financas-do-flamengo-em-2020-apesar-da-pandemia-e-dos-riscos-assumidos-no-futebol-tudo-indica-que-as-contas-continuam-no-eixo.ghtml
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