Por Diogo Dantas | Extra:
O desgaste físico dos jogadores do Flamengo, atribuído ao calendário caótico
do futebol brasileiro, ocorre num momento de menor investimento do clube em
ciência do esporte. Se, nos últimos anos, o rubro-negro atraiu jogadores da
Europa, por outro lado, viu uma fuga de profissionais de elite da área médica
sem a reposição adequada. Desde 2019, a diretoria priorizou contratações de
atletas de ponta e não fez um investimento proporcional em preparadores
físicos, fisiologistas, fisioterapeutas, nutricionistas e até psicólogos.
A qualidade dos profissionais e as práticas de parte do Departamento de Saúde
e Alto Rendimento (DESAR) já causam desconforto ao técnico Renato Gaúcho,
sobretudo após as lesões de Pedro e Bruno Henrique. A forma como os jogadores
são trabalhados pela preparação física é o principal foco de questionamento. O
problema já havia sido detectado por Rogério Ceni e Doménec Torrent, que
tinham comissões mais numerosas. Já na era Jorge Jesus, que trouxe oito
profissionais da Europa, os funcionários do Flamengo se tornaram coadjuvantes,
inclusive o chefe do DESAR, o doutor Márcio Tannure.
A falta de visão sobre uma comissão técnica permanente de primeira linha está
presente na atual diretoria desde o começo da gestão, em 2019. Relatos obtidos
pelo EXTRA dão conta de que o clube com a maior folha salarial do Brasil tem
pago salários defasados em relação às principais equipes de São Paulo, Minas
Gerais e Rio Grande do Sul. Mesmo no Rio, há profissionais com funções
semelhantes e vencimentos mais altos no Vasco e no Fluminense. Recentemente, o
Flamengo tentou levar o preparador físico de um concorrente, mas o salário
oferecido não compensava.
Os vencimentos dos melhores preparadores do Brasil chegam a ser o triplo do
que o Flamengo paga aos seus funcionários hoje. Houve aumentos recentes para
parte deles, mas ainda aquém de outros clubes e despropocional em relação ao
alto investimento na contratação de jogadores e aos pagamentos que estes
recebem. Lesionados, Pedro, Gabigol e Arrascaeta, somados, custaram 50 milhões
de euros (mais de R$ 300 milhões).
Enquanto o Flamengo os comprava, houve uma debandada de outros profissionais,
acostumados com o alto rendimento, depois do sucateamento das funções na
gestão de Rodolfo Landim e do vice de futebol Marcos Braz. Desde a primeira
reformulação do setor, no começo de 2019, nomes de excelência foram para
rivais locais e nacionais. Também houve saídas para o Japão, para a Europa e
para o mundo árabe, todos com uma justificativa comum: não havia valorização
financeira. Até as premiações por conquistas, que antes eram divididas, não
chegaram mais aos funcionários da comissão.
Há um ano, o Flamengo passou por novas saídas e chegadas, trouxe de volta
profissionais que estavam no começo da gestão e promoveu da base e do círculo
pessoal dos jogadores outros nomes, como o preparador físico Rafael Winick,
professor particular de alguns atletas, mas sem experiência no futebol.
Alexandre Sanz, preparador físico campeão com o Flamengo em 2009 na gestão
Marcos Braz, é outro questionado pelo currículo acanhado, com passagens por
Brasiliense, Madureira e Petrolina-PE. Tal realidade foi mostrada pelo GLOBO
ano passado.
Nesse período de trocas, o fisoterapeuta Fabiano Bastos e o preparador físico
Diogo Linhares foram para o Japão; o também preparador Daniel Félix foi
coordenar o Atlético-MG e hoje está no Vasco; o coordenador científico Daniel
Gonçalves saiu logo no começo da gestão para ganhar mais no cruz-maltino e
hoje está no Palmeiras; o alviverde também levou o fisioterapeuta Fred
Manhães; já o preparador físico Fábio Eiras foi para o Athletico-PR e hoje
coordena a pasta no Botafogo; além do nutricionista Thiago Monteiro, que saiu
por não se sentir valorizado e atualmente atende boa parte dos jogadores em
seu escritório particular. Entre os médicos demitidos no ano passado, Gustavo
Caldeira chefia o Vasco, e João Marcelo está no mundo árabe. Saíram ainda o
fisiologista Lucas Albuquerque, que foi para Portugal, e Roberto Drumond,
demitido por um áudio em que criticava Rogério Ceni, mas que antes disso já
havia deixado o CEP para ser scout do clube.
Terra arrasada após a era Jesus
A situação se deteriora já durante a passagem vitoriosa de Jorge Jesus. O
técnico português varreu o departamento de futebol e deixou apenas seus
profissionais de comissão, logicamente bem remunerados. Quando o Flamengo
perdeu o treinador, com ele se foi também qualquer filosofia de trabalho. O
chefe do departamento médico, Márcio Tannure, cujo espaço havia se reduzido,
precisou retomar as rédeas e começou a pensar em reformulação. Mas acabou
tendo que lidar com outros interesses e indicações. A diretoria impôs o médico
Marcelo Soares, sócio do ex-chefe médico do rubro-negro, José Luis Runco,
desafeto de Tannure. É Marcelo quem acompanha mais o dia a dia dos trabalhos
no Ninho do Urubu. Tannure conseguiu trazer mais dois médicos de sua
confiança, além do fisioterapeuta Márcio Púglia, do Vasco, que veio para
ganhar salário menor. Mas áreas não conversam entre si como nos tempos do
Centro de Excelência em Performance (CEP), moldado em 2016.
Entre 2017 e 2019, o Flamengo liderou como o clube com menor número de lesões
na Série A — e se prendeu a essas estatísticas. O trabalho de controle de
carga era bem feito e baseado no conceito de transdisciplinaridade. Ou seja,
todas as áreas do departamento se comunicavam para entender os processos com
os atletas, até chegar ao treinador e à tomada de decisão sobre poupar ou
escalar.
Quando Jorge Jesus assumiu e fez a limpa no setor, o trabalho ficou guardado
em uma gaveta, simbolicamente. Márcio Sampaio era o responsável pela prevenção
de lesões, mas fazia isso de forma diferente, sem rodízio, sem poupar, levando
os atletas ao limite. A metodologia levava em conta que os atletas iam
estourar em algum momento. Mas se baseava em uma boa recuperação caso isso
ocorresse. Houve casos como o de Gerson, que fez muitos jogos seguidos e nunca
se machucou.
Jorge Jesus centralizava tudo. Quando ele saiu, o Flamengo tentou retomar a
rotina anterior a sua chegada. Mas já sem os mesmos profissionais. Houve,
então, a nova reformulação ao fim de 2020. De 2019 para cá, sobraram no clube
apenas o fisioterapeuta Mário Peixoto e o preparador físico Roberto Oliveira,
o Betinho. As escolhas na reposição foram questionadas internamente, sobretudo
por quem acompanhou a transição de filosofia. O próprio Domènec, em reunião no
auditório do CT, falou aos novos profissionais: "Eu não pedi vocês aqui,
estava muito satisfeito com a comissão anterior, mas vou ter que me adaptar".
O catalão ficou transtornado com as trocas em meio à temporada, sem que
tivesse sido consultado.
Nunca foi explicado por que houve uma reformulação no departamento que era
visto por todos como o mais competente, fazendo recuperações em tempo recorde.
Márcio Tannure voltou, então, a ter a missão de comandar as ações, o CEP se
transformou em DESAR, mas os processos esbarraram nas escolhas dos
profissionais e em um calendário que, por conta da pandemia, tem exigido mais
do que nos anos anteriores.
Procurado pela reportagem, o Flamengo não se posicionou. O vice de futebol
Marcos Braz, que concederia uma entrevista coletiva, ainda não apareceu para
dar explicações.
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Imagem: Marcelo Cortes