Entre o luto e as glórias, Flamengo se une e bate recorde de títulos na base no ano de sua maior tragédia



A linha emocional que separa alegria e tristeza nunca foi tão tênue no Flamengo como em 2019. No mesmo ano em que viveu na base uma tragédia sem precedentes, a maior de seus 124 anos de vida, o clube vai fechar dezembro com a temporada de maior sucesso de sua história somando todas as categorias. Dez meses depois do incêndio que matou 10 jovens no alojamento do Ninho do Urubu, o Rubro-Negro atinge um feito inédito no país: unificou os títulos brasileiros sub-17, sub-20 e profissional.


O Brasileiro Sub-20, conquistado no último domingo após a vitória por 3 a 0 sobre o Palmeiras em Cariacica (ES), foi o 21º título da base rubro-negra em 2019. Já igualou o recorde do clube do ano passado, só que agora com conquistas mais expressivas entre as categorias sub-16 e sub-20.

Os títulos da base rubro-negra em 2019:

Sub-20
Campeão Taça Guanabara
Bicampeão Torneio OPG
Bicampeão Carioca
Campeão Brasileiro

Sub-17
Campeão Brasileiro
Campeão MU Summer Tournament (Inglaterra)
Campeão Taça Rio

Sub-16
Campeão Puskas Kupa (Hungria)
Bicampeão Mundial (Dubai)
Campeão Verona Cup (Italia)

Sub-12
Campeão IberCup Porto Alegre
Campeão IberCup São Paulo
Campeão Carioca de Futsal
Campeão Metropolitano 2019

Sub-11
Campeão Taça Os Donos da Bola
Campeão Futsal Torneio de Camburiú

Sub-10
Campeão Copa Dente de Leite
Campeão Carioca de Futsal

Sub-9
Campeão Go Cup

Sub-7
Campeão Novos Talentos
Campeão Carioca


O sub-16, com Caíque Tocantins e Samuel, jovens que escaparam ilesos do incêndio, ganhou três títulos internacionais. Entre eles, o bicampeonato do Torneio de Dubai, considerado o Mundial da categoria. Venceu times como Real Madrid, Porto, Milan, Arsenal e Manchester United.

Tem ainda a final da Supercopa Sub-17 nesta quinta-feira, na preliminar de Flamengo x Avaí no Maracanã, e a Supercopa Sub-20 (que vale vaga na Libertadores Sub-20) nos dias 19 e 22 de dezembro. Chances de ampliar o próprio recorde em um fim de temporada de orgulho para essas categorias, algo impensável após um início tão trágico.


Como tantos jovens, que viveram de perto toda a tragédia e perderam amigos, recuperarem a alegria de jogar futebol tão rapidamente? Superar não seria a palavra correta, até porque o incêndio ainda está muito vivo no dia a dia da base do Flamengo e é tema recorrente entre todos.

Vice e gerente da base, Zanelli e Freeland posam com as taças de campeão brasileiro sub-17 e sub-20 de 2019 — Foto: Thiago Lima
Vice e gerente da base, Zanelli e Freeland posam com as taças de campeão brasileiro sub-17 e sub-20 de 2019 — Foto: Thiago Lima

Mas o clube aprendeu a conviver com a dor e se unir a ela. O lema "do luto à luta", criado para trabalhar o lado psicológico de todos após o que aconteceu em fevereiro, saiu da teoria para a prática.


– Ninguém vai esquecer isso, de jeito nenhum. Até as pessoas que estão chegando agora perguntam como foi e tal. Na semana seguinte, fomos obrigados a sentar todos: "E aí, como vai ser? O que a gente vai fazer?" Temos que preparar uma forma que todos os profissionais têm que participar e entender que a vida segue. A gente não vai esquecer. Cada vez que ia para um torneio via os jogadores lembrarem, agradecerem, chorarem... – disse o vice-presidente de base, Vítor Zanelli, segurando as lágrimas:

– A gente sabia que eles estavam levando pelo lado positivo e que o ano iria ser bom. Ninguém vai esquecer, tem que jogar por eles como temos feito.

Gerente das categorias de base rubro-negras, Eduardo Freeland trata a tragédia como o pior momento que ele viveu, não só profissionalmente. O dirigente, no entanto, fez coro a Zanelli para destacar a força-tarefa no clube para seguir em frente:


– Foi o momento mais difícil da minha vida. Mas fez com que a gente criasse uma unidade ainda maior no clube. Foi muito bonito, depois de tudo o que aconteceu, ver a entrega dos profissionais, dos meninos. Impressionante como conseguimos reconstruir e reestruturar tudo. Foi um ano muito difícil, por um tempo não podíamos entrar no Ninho, mas gerou uma superação absurda. Acho que todos entenderam que a responsabilidade cresceu por tudo o que estamos representando e jogando pelos meninos.

– Foi muito duro, mas também muito bonito. Dá muito orgulho terminar 2019 como estamos terminando.

Planejamento, metodologia e aposta no futsal

Flamengo se dividiu em praticamente três times no sub-20 na reta final do ano — Foto: Ian Sena / Flamengo
Flamengo se dividiu em praticamente três times no sub-20 na reta final do ano — Foto: Ian Sena / Flamengo

Há três anos o Flamengo conta com a consultoria da Double Pass, empresa belga especializada em categorias de base, que colaborou para a formação da badalada geração belga, além da reformulação do futebol alemão.


Além disso, entre os pilares da rápida reconstrução, o planejamento teve papel essencial para o fim de ano recheado de títulos. Por exemplo, ter montado três times diferentes e competitivos no sub-20 mesclando forças, o que possibilitou a conquista de três competições simultâneas nas últimas semanas: OPG, Carioca e Brasileiro. Para isso, abriram mão de jogar um campeonato, como explicou o vice de base:

– Fizemos algumas coisas "fora da caixinha". Por exemplo, decidimos não participar dessa Copa RS, que é um excelente campeonato, tem visibilidade muito boa, nível de competição altíssimo, mas nós abrimos mão para ter um dezembro tranquilo de preparação para a Copinha, e sabíamos que poderia atropelar o Brasileiro. Não deu outra. E isso decidimos lá em março.


Além do foco na Copinha em janeiro, o sub-20 rubro-negro deve ser bastante requisitado em 2020 pelo profissional para jogar o Campeonato Carioca. Isto porque o time principal entrará de férias mais tarde esse ano e será forçado a atrasar a próxima pré-temporada, paralela ao Estadual.

Levar os jogadores para competir em nível internacional é outra estratégia de planejamento para dar mais bagagem aos garotos. O Flamengo tem competido nos últimos anos de vários torneios de base na Europa e no Oriente Médio.

Futsal virou uma aposta do Flamengo para a captação de jogadores para a base — Foto: Divulgação
Futsal virou uma aposta do Flamengo para a captação de jogadores para a base — Foto: Divulgação

Outra aposta interna promovida por Zanelli, ex-jogador de futsal do clube, é no salão. O dirigente ampliou em mais duas categorias do Flamengo nas quadras, o sub-15 e o sub-17, e aumentou a integração delas com o campo, ganhando mais tempo para habituar jogadores mais técnicos e rápidos no gramado.


– Dentro do futsal você trabalha a velocidade de raciocínio, parte técnica, então você consegue captar atletas que sejam inteligentes e habilidosos. Hoje nosso trabalho com futsal e campo são complementares. Começamos com o sub-6 no futsal e vamos aumentando a participação no campo até inverter e ficar só no campo. Tínhamos só até sub-13, não tinha captação entre 14 e 17 anos.

Reinier e Lázaro começaram juntos no futsal do Flamengo. Clube está ampliando a modalidade na base para formar novos talentos — Foto: Arquivo pessoal
Reinier e Lázaro começaram juntos no futsal do Flamengo. Clube está ampliando a modalidade na base para formar novos talentos — Foto: Arquivo pessoal

Toda a base conta com uma metodologia ofensiva, refletida em números expressivos. O sub-20, sob o comando do técnico Maurício de Souza, fez 142 gols em 79 jogos no ano. O sub-17, 105 gols em 61 partidas. Os dois times ainda contam com os artilheiros nacionais em 2019 de suas respectivas categorias: Rodrigo Muniz com 28 gols e Lázaro com 25, respectivamente.


– Hoje temos uma metodologia, uma forma de jogar única. Algumas vezes fico na televisão e vejo falarem: "Influência do Jorge Jesus já na base". Não é influência, é o DNA do Flamengo.

– Querer fazer gol sempre, ser protagonista do jogo. Tem que ter esse foco para preparar o jogador para o grande desafio de chegar ao profissional muito bem preparado.

Zanelli também está à frente da recém-criada base de futebol feminino e promete melhorar a estrutura para as jogadoras do Flamengo, que em seu primeiro Brasileiro Sub-18 terminaram na sexta colocação. Neste mês, elas vão disputar o Brasileiro Sub-16. A meta é conseguir repetir o sucesso dos garotos do Ninho com as meninas.


Investimento e captação

Pela primeira vez com um vice-presidente de futebol de base, o Flamengo tem aumentado ano a ano o investimento nas categorias. Neste ano, a garotada herdou o antigo módulo profissional no CT, com estrutura melhor do que a maioria dos clubes profissionais da Série A.

O orçamento anual é de aproximadamente R$ 16 milhões. O que ajuda na captação de reforços para a base. Neste ano, por exemplo, o Flamengo comprou 50% dos direitos econômicos de Matheuzinho por R$ 1,2 milhão. O lateral-direito estava no time profissional o Londrina e chegou para suprir a perda de Wesley Gasolina, que não renovou contrato e foi para a Juventus, da Itália.

Matheuzinho estava no profissional do Londrina antes de chegar ao Flamengo — Foto: Gustavo Oliveira/Londrina EC
Matheuzinho estava no profissional do Londrina antes de chegar ao Flamengo — Foto: Gustavo Oliveira/Londrina EC

Coincidentemente, o Flamengo tem feito a contratação de jovens que figuram entre os profissionais de outros clubes para reforçar seu time sub-20. Além de Matheuzinho, aconteceu também com o zagueiro Chico e o volante Diogo (ambos do Americano), e o atacante Guilherme Bala (do Madureira). Freeland tratou como pontual o perfil e não considera que isso seja uma tendência.


– Temos uma verba em orçamento separada para a aquisição de jogadores na base, que tem aumentado ano a ano. Mas basicamente queremos contratações muito pontuais. Gostaria de em alguns anos nem precisar usar essa verba. Se tivermos a base cada vez mais estruturada, não teremos tanta necessidade de trazer um Matheuzinho, por exemplo.

– Nossa ideia não é contratar por contratar, isso não faz muito sentido na base. Temos que desenvolver esses meninos com a cara do Flamengo e pontualmente contratar alguns destaques – ressaltou.

A diretoria rubro-negra ampliou o número de observadores, os famosos "olheiros", para 10, e eles se dividem para monitorar jovens talentos pelo Brasil. Além disso, o clube está fazendo parcerias com clubes de bairro e a Prefeitura do Rio para fazer captação nas vilas olímpicas da cidade.


– Nós fazemos captação a partir dos seis anos. O que pegamos esse ano? "Vamos ampliar isso, buscar novas parcerias porque o funil é muito grande". Objetivo é cada vez mais aumentar a área para ter onde buscar jogadores. Hoje temos uma parceria com o município, e em um ano vamos atingir 3.600 jovens diretamente. Até então, nosso maior celeiro, que é nossa peneira no Cefan, atingia de 2.000 a 2.300.

– A gente sabe que 20% dos jogadores é que chegam, mas nós queremos que cheguem 40%, 50%. A nossa expectativa é conseguir avaliar em torno de 10.000 atletas por ano entre 2020 e 2021.

Richard Ríos se destacou pela Colômbia no futsal até chegar ao Flamengo — Foto: Lucas Figueiredo / CBF
Richard Ríos se destacou pela Colômbia no futsal até chegar ao Flamengo — Foto: Lucas Figueiredo / CBF

O Flamengo também está voltando olhares para o mercado estrangeiro, onde compete com grandes clubes europeus atrás de joias sul-americanas. Na semana passada, por exemplo, o Rubro-Negro enviou um observador técnico para acompanhar de perto o Sul-Americano Sub-15 em Assunção, no Paraguai.


E as apostas internacionais já começaram, sendo a Colômbia do ex-rubro-negro Cuéllar o alvo inicial: de lá vieram o atacante Luis Caicedo "Mesu" e o meia Richard Ríos, de 18 e 19 anos, respectivamente. O primeiro não vingou e já deixou o clube, mas o segundo, destaque no futsal de seu país, correspondeu às expectativas e tem sido titular na maioria das partidas no sub-20.

Frutos imediatos e a longo prazo

A base tem sua temporada mais vitoriosa, mas não é de hoje que o Flamengo colhe frutos. Nos últimos três anos, o clube arrecadou cerca de R$ 440 milhões em vendas de pratas casa, valor que contribuiu para investimentos pesados no profissional.


Vendas como as de Vinicius Junior e Paquetá permitiram que a diretoria fosse forte ao mercado e montasse o elenco campeão brasileiro e da Libertadores.

– Nosso foco é entregar o melhor jogador que podemos entregar. Temos dois desdobramentos, que é o retorno esportivo, como Reinier e Vinicius Junior deram, e o retorno financeiro, que é uma realidade do futebol brasileiro. Saber que os números estão chegando nesse montante é motivo de orgulho porque mostra que os jogadores que estamos formando estão chegando a esse nível mundial – disse Freeland.


Crias do Ninho, Vinicius Junior e Paquetá renderam caminhão de dinheiro ao clube — Foto: Gilvan de Souza
Crias do Ninho, Vinicius Junior e Paquetá renderam caminhão de dinheiro ao clube — Foto: Gilvan de Souza

Jesus de olho em novos talentos

E a fábrica não para. Reinier e Lincoln são nomes com mercado na Europa. Especialmente o primeiro, alvo constante de assédio. Aos 17 anos, renovou no mês passado com o Flamengo até 2024. Em contrapartida, sua multa caiu para 35 milhões de euros. Mais cedo ou mais tarde, sua venda parece ser questão de tempo. No entanto, há sempre novos nomes na fila.


Dos 30 inscritos na decisão da Libertadores, 13 foram formados na base. E em 2020 o profissional deve ter novas caras incorporadas gradualmente. Nomes como Vitor Gabriel, Hugo Souza e Vinicius Souza já figuram no time principal, mas serão promovidos definitivamente. O meia Yuri César, o atacante Rodrigo Muniz e os laterais Ramon e Matheuzinho trilham pelo mesmo caminho, mas ainda têm idade para mais um ano na categoria.

Yuri César é um dos destaques do sub-20,  já treinou com Jorge Jesus e tem grandes chances de integrar o profissional em 2020 — Foto: Fernando Madeira/A Gazeta
Yuri César é um dos destaques do sub-20, já treinou com Jorge Jesus e tem grandes chances de integrar o profissional em 2020 — Foto: Fernando Madeira/A Gazeta

Há também a safra do sub-17, com Lázaro, Daniel Cabral e Gabriel Noga. O trio, que inclusive já participa de jogos do sub-20, é observado com carinho. Apesar de o clube ter cautela para não se precipitar e pular etapas, não está descartado que eles em breve repitam a trajetória de Reinier, da mesma geração.


– O Carlos Noval (coordenador de transição) tem feito esse trabalho e conversa bastante com o Jesus e a comissão técnica. Estamos mandando por semana de 10 a 12 jogadores para treinarem com o time principal. Obviamente, ele focou no profissional e entregou muito bem os resultados. Mas Jesus e João de Deus estão sempre levando nossos jogadores e observando – elogiou Freeland, dando exemplos:

– O Vitor Gabriel desce para nos ajudar, mas já é jogador do profissional, assim como o Hugo Souza, o Vinicius Souza, que vem sendo aproveitado. É mérito dos meninos, que têm mostrado o valor deles.

Lázaro e Reinier, maiores joias atuais terão forte concorrência no profissional. Atacante pode trilhar mesmo caminho do amigo em breve — Foto: Alexandre Vidal / Flamengo
Lázaro e Reinier, maiores joias atuais terão forte concorrência no profissional. Atacante pode trilhar mesmo caminho do amigo em breve — Foto: Alexandre Vidal / Flamengo

Porém, não é fácil conseguir um lugar no time profissional. Com investimento pesado em jogadores renomados, o Flamengo foi campeão brasileiro e da Libertadores sem jogadores da base no time titular. Um desafio a mais para a garotada, mas Freeland aponta para o lado positivo da concorrência:


– Eles sabem que vão competir com jogadores muito bons. Para nós é ótimo ter Rafinha, Filipe Luís, Gerson, Gabigol, Bruno Henrique... Porque eles sabem que terão de brigar lá em cima. Talvez isso diminua um pouco o espaço dos meninos, mas faz com que a gente eleve o nosso sarrafo.

– É natural que isso eleve o nosso nível. E se estamos no Flamengo e temos que ter excelência em tudo, também temos que elevar o nosso nível na base. Diminui um pouco o espaço, mas eleva em qualidade.


Fonte: https://globoesporte.globo.com/futebol/times/flamengo/noticia/entre-o-luto-e-as-glorias-flamengo-se-une-e-bate-recorde-de-titulos-na-base-no-ano-de-sua-maior-tragedia.ghtml

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